sábado, 3 de outubro de 2009

O Elogio

Patrícia Pessimes, uma jovem advogada de seus 28 anos, ainda estava progredindo em sua profissão. Formada há uns poucos anos, saíra da faculdade já contratada por um escritório de advocacia no qual faria parte da sociedade, dividindo-o com mais três amigos.

A relação entre os sócios fora muito boa durante os dois ou três primeiros anos de parceria, no entanto, de uns tempos para cá, Patrícia e seus companheiros andavam divergindo em alguns pontos e ela sentia que, mais cedo ou mais tarde, os demais chegariam para ela e lhe proporiam algo em troca de sua saída do escritório.

Andava cabisbaixa por uma rua escura nesta sexta à noite. O tempo estava frio e Paty ainda se tremia dentro de seu sobretudo. Foi então que uma senhora de lenço na cabeça passou por ela em direção oposta. Esbarraram-se. Patrícia porque não notara a mulher vindo em sua direção, uma vez que se distraíra observando os livros e montes de folhas de processos cujos braços carregavam exaustivamente; já a velha mulher não parecia ter batido de frente com Paty ocasionalmente.
Assustada, falou, com espanto e de sobressalto, um “desculpe” para a mulher de lenço em cores fúnebres. Ela levantou o rosto e fitou Paty cautelosamente, parecia que enxergava a alma da moça através dos olhos de Patrícia que fechou e abriu as pálpebras como quem não acreditasse muito bem naquilo que seus olhos pareciam lhe mostrar.
A rua já estava bem mais escura e a temperatura parecia ter caído mais uns três graus, pelo menos essa era a sensação térmica sentida por Paty. Mais uma vez olhou para a velha e essa ainda a fitava, dando, em seguida, um sorrisinho de leve por entre os dentes amarelados.
Patrícia pediu licença e já estava se endireitando para ultrapassar a mulher que se virou para a jovem advogada e proferiu em tom amável: gostei de seus olhos, não enxergo muito bem à luz do dia, tenho fotossensibilidade, mas durante a noite vejo perfeitamente bem. Gostei deles. Paty fez uma cara estranha, como quem achasse o elogio pouco necessário. Em seguida, respondeu-lhe: até seriam bonitos, não fossem esses meus óculos que os escondem e acabam realçando minhas sobrancelhas que, infelizmente, eu detesto; sem contar que sempre tento escondê-las transpassando a franja do cabelo e encobrindo-as, mas nem sempre resolve, pois acho minhas orelhas não grandes, mas um tanto desproporcionais para o meu rosto, então acabo deixando o cabelo mais solto para disfarçar, além do que, me disseram que eu não fico bem de franja, ela cobre minha testa e acaba achatando meu rosto que já não tem um formato muito elegante.
A senhora parecera ter ficado confusa no meio de tantos adjetivos. Fez uma expressão de descontentamento e voltou a falar, desta vez segurando nas mãos da advogada. A luz de um poste próximo encandeou a mão da senhora sobre a mão da jovem, podendo-se notar o quão discrepantes eram as mãos das duas. Paty sentia com sua mão lisa e delicada, alva e de unhas bem feitas a aspereza da mão grosseira que se postava sobre a sua. A senhora então disse que um dia já fora preocupada com essas coisas todas, porém o tempo lhe ensinara lições muito importantes e ela já aprendera a dar maior relevância a outros aspectos da vida. Quando se é jovem qualquer espinha é um tumor maligno, qualquer volume a mais no cabelo é um passaporte pra amargura, qualquer fio fora do lugar é um salto no precipício.
O mesmo oxigênio que usamos para respirar envelhece nossas células e, com o decorrer dos anos, ele nos leciona valores fundamentais pra se manter sempre jovem, mesmo com 64 anos. Paty sentiu a senhora apertar com força sua mão direita. Tive quatro filhos, ela disse, todos lindos e saudáveis, mas de que adianta terem se tornado pessoas sadias do ponto de vista fisiológico e por dentro não possuírem o mínimo de compreensão, sentimento, reciprocidade. Nada. Hoje, sozinha, ando por ai sujeita à sorte do tempo.
Patrícia sentiu a frieza com que a mulher falava de como levava a vida, ao passo que também sentira a amabilidade com que falara dos filhos. Olhou para a pele enrugada da senhora e viu as profundas marcas de dor, batalha e superação fortemente traçadas sob os olhos, no centro da testa, nas laterais do rosto. Pensou, então, nos poucos vínculos que possuía com a vida, não tinha familiares na cidade, todos – que se resumiam a um tio, uma tia e dois primos – residiam no Norte, os pais já falecidos e irmãos não havia. Segurou a lágrima. Palpitou o peito. Ressecou-se a garganta. Contraiu-se a pupila. Encolheu os dedos. Esfriou-se a mão. Estalou-se o pé esquerdo.
O que estaria fazendo nesse mundo? Onde estavam os sonhos que não mais perseguia? E o intercâmbio na Inglaterra? E a visita aos parentes do Norte? Todos esses pensamentos ocorreram de modo tão repentino e veloz que a senhora ainda estava com a mão sobre a da moça e ainda olhava para seu rosto tão expressivo agora depois de todas essas reflexões.
Paty perguntou para onde a mulher estava indo. Foi respondida com um simples “nem sei, para onde Deus quiser me levar”. Paty só tinha seu emprego, nada mais lhe prendia àquele lugar, emprego que já estava prestes a perder. Disse para si mesma que voltaria para os tios, e de lá poria em prática todos os planos que havia feito durante a faculdade: do intercâmbio à publicação de um livro. Sentiu a senhora soltar seu braço e dar-lhe um tapinha encorajador no ombro. Paty correu em direção ao seu carro usado e recentemente adquirido o qual se encontrava uns sete metros mais adiante. Jogou tudo o que trazia nas mãos em cima do banco traseiro, baixou o vidro do motorista e acenou para a velha que a essa altura já nem mais se encontrava naquele local.
Com uma das mãos sobre o volante, fechou o vidro com a outra e pousou a mesma mão sobre um pequeno papel que estava entre os documentos judiciais que vinha carregando. “Boa sorte”. Sorriu enquanto segurava. Ligou o motor do veículo, engatou a marcha e saiu na estrada à direita.
Por: Arthur Rocha.

3 comentários:

  1. Esse texto e dá a sensação de que conheço essa personagem,é incrível a semelhança dela com Silvia hahahaha.Agora Falando sério, achei deveras comovente a lição passada pela velhinha.

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  2. Adorei... xD
    Bem escrito, bem desenvolvido e comovente, definitivamente Arthur Rocha tem seu talento.

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  3. Neh isso, na parte dos olhos, óculos e franja me senti a personagem! Shsiuahsuiahsia...
    E mais um texto lindo, Arthur! Como sempre: lindo, bem escrito e comovente.
    Sério mesmo, pense em começar a escrever livros, pq vc já tem uma fã! ;)

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